Pan
FLÁVIO GOMES
SÃO PAULO (meu passaporte é o mesmo) -
Durante duas semanas, um pouco mais,
fomos bombardeados pelo verde-amarelo. Nas bandeiras, nos uniformes, no
hino, nas perucas, nas camisetas, nos bonés.
Arenas, ginásios, estádios, quadras, tudo tomado de verde-amarelo, e de um
otimismo incontido. O avião da TAM atrapalhou muito. Como é que pode cair um
avião no meio do "nosso momento"?
E o "nosso brilho", "nossas meninas", "nosso atletismo", "nosso basquete",
"nosso vôlei", "nossa natação", "nosso judô", "nosso tênis de mesa", "nosso
iatismo", "nosso hipismo"?
Que sacanagem, a desse avião. Fomos obrigados a trocar os sorrisos dos
apresentadores, dos "nossos apresentadores", pelo ar contrito, que não fica
bem comemorar nada com 200 pessoas torrando num cilindro de metal. Mas é só
por um dia ou dois. Amanhã tem Brasil-sil-sil de novo.
(Parênteses. O maior mal do Brasil é o cara da Globo que dispara a vinheta
"Brasil-sil-sil". O dia em que esse cara se aposentar, metade dos problemas
do país estarão resolvidos. Aproveitem e aposentem, também, o responsável
por misturar hino nacional com musiquinha do Senna.)
E obedecemos, por duas semanas, um pouco mais, à ordem-do-dia martelada
minuto a minuto pela TV. Vamos torcer pelo Brasil no revezamento! Vamos
torcer pelo vôlei do Brasil! Vamos torcer pela ginástica do Brasil! Vamos
torcer para o cara tropeçar porque assim o Brasil leva! É ouro para o
Brasil! Vamos torcer pelo Brasil, putada!
Não, não pude assistir a nenhuma competição apenas para assistir. Eu tinha
de torcer para o Brasil, senão corria o risco de ser deportado.
Ah, quantos sorrisos, quanta gente alegre, e quantas lágrimas no pódio! Como
é bom, ser brasileiro! Que potência!
Que bando de tontos, isso sim.
O comportamento do brasileiro tem sido pautado há muitos anos pela TV Globo,
isso não chega a ser uma grande novidade, mas quando tem esporte na parada,
é um pavor. As pessoas vão às arquibancadas com um único objetivo: fazer
papel de palhaço para aparecer na Globo.
Não é muito difícil. Basta levar um cartaz, ou meter uma peruca ridícula, ou
pintar a cara, ou as unhas, ou usar óculos enormes. E ficar de olho nos
telões, porque uma hora uma câmera vai te pegar e você vai apontar para o
telão, cutucar o vizinho, e acenar e pular feito um chimpanzé pintado de
verde-amarelo. Cante que é brasileiro com muito orgulho e com muito amor,
também. Faça parte da "galera".
A Globo trata "nossos" atletas como se fossem todos dela, da Globo. É a
delegação global. Da mesma Globo que está cagando para o esporte, não
transmite um jogo de basquete por ano, mas quando o basquete ganha o ouro,
num torneio medíocre de times fraquíssimos, é o "nosso basquete", e lá vão
os bobões dar entrevista para a Globo, chorar para as câmeras da Globo.
Da mesma Globo que promove os Jogos Mundiais de Verão, tudo devidamente
patrocinado por estatais e por marcas de chinelos e de tênis, jogos que não
existem, só servem para embromar a patuléia nas manhãs de domingo. Da mesma
Globo que promove "desafios internacionais" de babaquices pueris como vôlei
de praia, futebol de areia, patinete, bambolê, skate.
E enchemos o rabo de medalhas, e inventamos uma disputa estúpida com Cuba,
que tem menos habitantes do que São Paulo, e os cubanos são vaiados pelos
incrivelmente civilizados torcedores que vão às arenas de peruca
verde-amarela, porque se tornam inimigos da pátria, párias que não têm o
direito de derrotar "nossos meninos" e "nossas meninas", de ser melhores do
que nós.
Toda glória aos atletas. É o momento deles. Sacrificam-se, treinam, lutam,
têm uma vida dura. Vivem num país que não tem, nunca teve, política de
esporte. Mas fazem papel de bobos em momentos como esse, choram para
aparecer no "Fantástico" e no "Jornal Nacional", permitem que a mídia de
aproprie de suas vitórias, que o país que lhes vira as costas festeje seus
triunfos e os assuma coletivamente, é a vitória do Brasil!
Vitória do Brasil o cacete, as vitórias são individuais, nunca fizemos nada
por eles. Não vi ninguém falar das derrotas do "nosso ciclismo", ou do
"nosso badminton", e ninguém dirá que "nosso basquete" é uma bomba se o
Brasil não passar do pré-olímpico, o que vai acontecer, ou que "nossa
natação" é um fiasco se não vier nenhuma medalha de Pequim, no ano que vem,
o que é bem provável. Derrotas não são para dividir. Cada um engula a sua.
O Brasil ganhou dez medalhas em Atenas em 2004, cinco de ouro, sendo três
delas na vela e no hipismo, redutos de alguns clãs, esportes que não têm
praticantes no país, são apenas diversão de milionários. Outra foi no vôlei
de praia, esporte inventado aqui, e outra, aí sim, na única modalidade em
que é forte de verdade, o vôlei de quadra masculino.
"Nossa natação" não ganhou nada, "nosso atletismo" arrancou um bronze na
maratona, "nosso judô" trouxe dois bronzes, "nossa ginástica" saiu zerada,
"nosso taekwondo" idem, levamos couro da Ucrânia, da Hungria, da Grécia e da
Romênia.
Não, não se mede um país pelo número de medalhas que ganha numa Olimpíada.
Noruega, Suécia e Canadá ficaram atrás do Brasil em Atenas. Somos melhores
que Noruega, Suécia e Canadá? Faz-me rir. Mas é o que se tenta vender aqui.
Que somos demais, verde-amarelos, com muito orgulho, com muito amor. Que
somos do tamanho de "nossas medalhas".
Gastaram 3 bilhões para fazer o Pan no Rio. Ergueram estádios e ginásios.
Umas meninas do hóquei, acho, preteridas da seleção depois de acusações até
de assédio sexual, protestaram num jogo qualquer torcendo por Cuba, e vi uma
mulher na TV revoltada, chapéu verde-amarelo enfiado em sua cabeça ridícula,
xingando as meninas e bradando "isso aqui é Pa-na-me-ri-ca-no", separando as
sílabas. A vaca não tinha a menor idéia do que estava falando. "Aqui tem que
ser brasileiro, com muito orgulho, com muito amor". Patriota de araque.
Patriota de boutique.
Essa dinheirama toda será abandonada, não tenham dúvidas. Arenas, ginásios e
sei lá o que mais vão ter infiltrações no teto, as piscinas vão secar e
ficar cheias de dengue, tudo vai apodrecer para poder ser reformado um dia,
ninguém vai querer pegar o mico para pagar a conta.
Em Pequim, "nossos meninos" e "nossas meninas" vão ganhar o que sempre
ganham, meia-dúzia de medalhas no vôlei, no vôlei de praia, no "nosso
hipismo" e talvez no "nosso iatismo". Ninguém vai assumir "nossas derrotas".
"Nossos atletas" vão reclamar da falta de estrutura, da falta de piscinas,
de pistas de atletismo, de ginásios, de condições.
O Pan não mudou o Brasil em nada, não se iludam. Os sorrisos dos
apresentadores de TV são uma tentativa inútil de inflar a auto-estima do
brasileiro, um esforço enorme para que o brasileiro se convença de que é
vencedor, bem-sucedido, simpático e bacana.
Somos demais, em resumo, é isso o que o Pan nos ensinou, e se você não se
sente assim, tem algum problema. Porque o Brasil da Globo é de ouro, é o
máximo, fizemos o melhor Pan da história, graças a Deus, com muito orgulho,
com muito amor.
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texto grande, mas muito bom!
posts dizendo que o texto é muito grande, serão apagados!
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